2005-06-06

Os despojos do não no referendo francês

artigo de Carlos Vale Ferraz, no Público de 2005-06-06.

Para evitar que os pescadores das águas turvas dos nacionalismos destruam a Europa aberta que ainda é viável é necessário matar a serpente no ovo, o que também se faz dizendo sim a este tratado.

A afirmação de alguns aprendizes de feiticeiro de que o Não ao tratado constitucional europeu é o Não da positiva, o Não que permite refundar a Europa noutras bases, tem a mesma lógica que alguém esmagar os dedos a um pianista mediano com o argumento de que quer fazer dele um grande guitarrista!

O não da França ao tratado constitucional europeu matou à nascença a ideia de uma Europa política que pudesse vir a desempenhar um papel de algum relevo no Mundo. Sem a França uma Europa forte, autónoma e moderadora não é possível e, reduzida à sua dimensão económica, a ainda chamada União Europeia vale politicamente menos que potências regionais como a Índia ou o Brasil, para não falar da China.

Para as elites francesas defensoras da soberania nacional contra Bruxelas a alegria pelo resultado do referendo é espantosa: perderam influência numa entidade da qual faziam parte e passaram a ser mais irrelevantes no mundo que o Reino Unido de Blair que, ainda assim, é peão dos Estados Unidos!

Quanto aos franceses "d"en bas" as razões para o Não são consensuais, como escreveu Luís Salgado de Matos, para a massa, a Europa e a globalização ameaçam-lhe o emprego e os benefícios sociais e o estado-nação garantem-lhos. As consequências desta convicção são claras: exigência de proteccionismo económico e xenofobia através da criação de barreiras a mercadorias e a pessoas. É o retorno aos nacionalismos e não admira que Philippe de Villiers, um dos tenores do Não, tenha evocado o teórico fascista Charles Murras na noite dos resultados e que trotsquistas e comunistas se regozijassem por esta vitória dos trabalhadores franceses, embora ao som da Internacional!

Desde os anos 20 que na França e na Alemanha os frutos destas negras alianças são conhecidos, mas é para aproveitarem esta maré que se preparam Nicolas Sarkozy, da UMP, e Laurent Fabius do Partido Socialista. Os dois homens do futuro imediato em França fizeram a mesma análise dos resultados: os franceses querem mais França e menos Europa, mais proteccão e menos competição! Eles, pelo seu lado, querem ser eleitos presidentes da República Francesa em 2007 e vão fazer tudo para o ser, dando àqueles de quem necessitam aquilo que eles querem: subsídios e muralhas contra produtos e trabalhadores estrangeiros.

A nova política francesa nos próximos tempos será, assim, a de exigir em Bruxelas mais apoios para os seus agricultores, pescadores e industriais e de levantar internamente mais restrições à importação de bens e serviços e à entrada de emigrantes. Durão Barroso vai ser declarado inimigo público e apresentado aos franceses como a causa de todos os seus males, mas cada euro que Sarkozy e Fabius sacarem em Bruxelas, cada marroquino, português ou polaco que impedirem de trabalhar em Franca, será uma vitória sua. Em vez da solidariedade entre estados, regiões e cidadãos, a xenofobia, a lei da selva do mais forte e do cada um por si. Não está mal para quem, como Fabius, disse não ao tratado constitucional por ser pouco social e muito liberal, ou para quem, como Sarkozy, defendeu o sim para reforçar a posição da França na Europa!

Na esteira dos dois franceses surgirão réplicas nacionais em vários países, com o mesmo programa de saque a Bruxelas e levantamento de fronteiras, enquanto continuarão a falar no défice de democracia nas instituições europeias e do fosso entre políticos e cidadãos. De facto, o mesmo défice e o mesmo fosso que existem em cada uma das nações. Para evitar que os pescadores das águas turvas dos nacionalismos destruam a Europa aberta que ainda é viável é necessário matar a serpente no ovo, o que também se faz dizendo sim a este tratado.

Escritor, Aix-en-Provence

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