2008-11-02

Colóquio Tarrafal - uma prisão dois continentes.

Intervenção do Ministro da Justiça, Dr. Alberto Costa

Colóquio Internacional “Tarrafal – uma prisão, dois Continentes”
Assembleia da República
Lisboa, 29 de Outubro de 2008

Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhores Deputados
Senhores Participantes

Este Colóquio sobre o Campo de Concentração do Tarrafal – que a
Assembleia da República hoje acolhe – não é um evento banal, não é mais
um colóquio sobre mais um tema. Reveste-se de especial significado para
a nossa memória e vida colectiva.
Por isso começo por prestar homenagem a todos os que o tornaram
possível e também à Assembleia da República e ao seu Presidente, Jaime
Gama, que em nome dos potugueses aqui o recebem.
Na construção do presente e do futuro dos homens, o passado e a
sua memória são guias que não podemos abandonar. É a memória que
nos põe alerta e é o esquecimento que nos deixa sem reflexos.
A memória do Tarrafal transporta-nos a um tempo em que
decisões políticas, administrativas ou pseudo-judiciais levavam ao
internamento, por tempo ilimitado, de milhares de opositores políticos e
sociais.
Uma secção especializada do aparelho prisional, concebida e
ordenada para fins de repressão política, estava preparada para dar
execução a essas decisões.
Além do Tarrafal, recorde-se Peniche, Aljube, Angra do Heroísmo,
Caxias, outras mais.
A poucos quilómetros da cidade onde estudei, nos anos sessenta,
na vila da Marinha Grande, existiam dezenas de operários vidreiros
opositores ao Estado Novo que tinham passado longos anos no campo de
concentração do Tarrafal e falavam dos tormentos, torturas e privações
que ai tinham sofrido e de mortes que tinham testemunhado. O avô de
um colega tinha morrido no Tarrafal. Esses relatos marcaram-me. Sei
ainda o nome de muitos desses tarrafalistas.
Foi com muita emoção que, no princípio dos anos noventa, integrei
como deputado, uma delegação da Assembleia da República que foi
homenagear, no Tarrafal, os que lá morreram e todos os que lá estiveram
internados vindos da Europa e da África.
A primeira fase da história do campo de concentração do Tarrafal
decorreu entre 1936 e 1954.
Custa a entender como, mesmo depois da derrota do nazismo, o
campo de concentração de Cabo Verde continuava a funcionar.
E custa ainda mais entender como professores de Direito altamente
conceituados, e ainda hoje citados, quando tiveram responsabilidades
neste domínio, aceitaram coexistir durante muitos anos com o recurso ao
campo de concentração e, obviamente, à pseudo-justiça dos tribunais
plenários.
Circunscrito pela distância e pela natureza hostil, o campo do
Tarrafal, segundo os relatos que ouvi de quem nele esteve internado,
constituía uma máquina planeada e calculadamente gerida, orientada
para a eliminação da vontade e da esperança dos seus internados, e,
algumas vezes, para a eliminação da própria vida.
Um campo de concentração – não em sentido figurado, mas em
sentido próprio.
É por isso que temos de dedicar esquecimento e desprezo aos que
se serviram desses campos e prisões ao serviço dos seus objectivos, e
prestar homenagem aos que enfrentaram e criaram as condições para
uma sociedade diferente, com garantias e direitos para cada homem, seja
qual for o seu continente.
O campo de concentração do Tarrafal teve um segundo fôlego: foi
reaberto durante a guerra colonial, a partir de 1961, e até à revolução de
1974.
Também então os que se ocupavam da justiça e da política
prisional acharam natural o regresso do campo de concentração, tantos
anos depois da derrota dos promotores históricos dos campos de
concentração.
Dos anti-fascistas aos anti-colonialistas, o campo continuava a
cumprir uma missão repressiva, para que se podia ser remetido por
decisões policiais, administrativas ou politicas – mas nunca
autenticamente judiciais, já que a instrumentalização politica das decisões
dos tribunais as qualificava, verdadeiramente, como pseudo-judiciais.
Quando reflectimos sobre a história da repressão politica em
Portugal no séc. XX, os tribunais plenários, na esfera judicial, e o campo
de concentração do Tarrafal, como forma extrema de encarceramento e
tendencial eliminação da vontade e da esperança dos seres humanos
internados, surgem-nos como as mais insidiosas realizações repressivas.
Esta memória é um património que devemos conservar.
Plenários e campos de concentração não conseguiram eliminar a
esperança, essa marca inigualável de luta pela humanidade. Foi essa luta
que prosseguiu e a democracia e independência que triunfaram.
Para, a partir de 1974, virem a ser construídas instituições
democráticas – uma institucionalidade sem lugar para prisões politicas,
campos de concentração e tribunais plenários, assente nos princípios do
Estado de Direito. Princípios que hoje queremos ver estendidos a toda a
humanidade, sem distinção de continentes.
Ao pensarmos nessa nova institucionalidade, ao usarmos essa nova
institucionalidade, julgamos muitas vezes que ela provem apenas dos que
elegeram e dos princípios que os eleitos decidiram acolher.
Perante aqueles que estão connosco e que estiveram no Tarrafal,
quero dizer que também a eles devemos algo que têm a ver com as nossas
instituições, as nossas esperanças e a nossa realização como humanidade.
A todos presto a minha homenagem. O Tarrafal não venceu. É o
vosso exemplo que continuará a marcar.